terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Que país é esse? Crise econômica e origem do povo brasileiro

É de conhecimento de todos a atual situação político-econômica do Brasil. O momento é de tensão. Amizades desfeitas e grandes discussões na mesa de jantar sobre se é ou não golpe. As opiniões se dividem e parece que não conseguimos chegar a um equilíbrio um pouco mais saudável quando se trata deste assunto.
Mais do que discutir aqui se as ações dos governantes estão sendo eficazes ou não, se o governo é legítimo ou não ou quem é mesmo o grande vilão dessa história toda, fico com uma grande dúvida: Será que o Brasil não tem jeito?
Percebemos que por alguns momentos o povo se dividiu, proferiu palavras de ódio uns aos outros e vestiu a camisa de um lado. Mas me parecia que todos no fundo aspiravam pela mesma coisa: uma vida melhor dentro do próprio país.
Diante de toda esse caos que o Brasil está passando, sincronicamente comecei a ler o livro “Espelho índio – a formação da alma brasileira” do analista junguiano Roberto Gambini.
E então passei a refletir um pouco sobre a origem do povo do Brasil.
Aprendemos na escola que nosso país foi descoberto em 1500 quando os europeus chegaram até Porto Seguro acreditando estarem nas Índias. Mas precisamos antes de tudo nos questionar: se já haviam pessoas aqui, como é que uma coisa pode ser dita “descoberta”? O termo correto deveria ser invasão ou então simplesmente chegada. Mas o termo “descobrimento” se infiltrou e se estabeleceu na nossa linguagem de uma forma até poética: Navegadores heroicos chegaram a um território desconhecido e bravamente povoaram as terras virgens...
Esquecemos-nos dos índios que estavam ali vivendo. As terras foram apossadas sem se questionarem se os índios eram os legítimos filhos dela. Para esses europeus, a raça indígena era mera peça de cenário, desprovidos de qualquer direito, “até mesmo de continuar sendo o que sempre haviam sido” (Gambini, 2000).
A idéia de que aqui era o paraíso celeste também ficou muito forte. Pelas belezas naturais de suas praias, luminosidade, clima. Mas o paraíso não é só paraíso por conta da beleza, o Brasil era calmo, tranquilo e inclusive a voluptuosidade das mulheres nuas provocaram nos portugueses as mais deliciosas fantasias. E é ai que o povo brasileiro tem a sua origem.
Segundo as palavras de Gambini:

O desfalque e o ataque à natureza são nossos sinais de batismo, como o é também a posse da mulher índia pelo branco invasor, de cujo acasalamento resulta, nas reveladoras palavras de Darcy Ribeiro, a protocélula do povo brasileiro: a criação de um híbrido que nunca saberá quem é, por que nem pai e nem mãe lhe servirão de espelhos ou modelos de identidade.

            Nossa origem nos deixa órfãos desde o início. Essa pequena criança é diferente de seu pai por ter traços índios, e é diferente de sua mãe por ter características européias. “O começo do povo brasileiro é o começo do sim da alma ancestral da terra.” (Gambini, 2000).
            Sabemos então que nossa origem, a origem de brasileiro, carrega primeiramente uma mistura. Ficamos na nossa terra, mas desaprendemos a respeitá-la. Ficamos com a mãe-índia em seu lar, mas seguimos os ensinamentos do pai-português-invasor. Uma bagunça total.
            Queremos ser algo que genuinamente não somos. Imitamos, pois foi isso que nos ensinaram, mas não paramos para ouvir o que nossos sentidos realmente diziam.
            Queremos ser como eles, mas somos daqui. Dessa terra e desta natureza.



Referências:

Gambini, R. Espelho índio – A formação da alma brasileira. São Paulo: Axis Mundi, 2000.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O legado incompleto do pai-herói para o feminino em formação

Ouvimos muito falar nos heróis. Hoje em dia o contato que temos com essa figura é através dos desenhos da Marvel ou então nos videogames. Mas essa história começou muito tempo antes. Em incontáveis culturas e mitologias, o herói teve papel de destaque. Em geral tiveram um tipo de nascimento incomum, travando batalhas que vão além de seus limites pessoais para assim alcançar um nível de consciência mais elevado.
            Um dos principais papéis desse arquétipo é representar uma força unificadora em sua comunidade, capaz de promover um eixo de identificação com seus membros. A tarefa dupla do herói é: retirar-se da vida em sociedade, confrontar os mistérios da vida, da morte e do amor, para depois retornar transformado em “aquele que traz a vida”. Joseph Campbell dá esse nome a ele, pois seu retorno beneficia e renova a todos. A comunidade festeja sua volta.
            Como não vivemos mais em grandes grupos, podemos dizer que esse contato social próximo é feito através da nossa família. June Singer (1990), citada por Murdock (1994), nos diz que o arquétipo do herói sofreu mudanças dramáticas com a modernidade. Hoje, segundo ela, o herói é avaliado pelo quanto fizeram sua empresa crescer ou quão fértil é sua corporação, empresas essas que foram concebidas e desenvolvidas por indivíduos que não deixaram nada atrapalhar o caminho rumo à realização.
            O que falta ao padrão heroico atual é retornar para sua comunidade transformado pelas experiências que teve. A jornada ficou incompleta.
            Se retomarmos a ideia de que a família é esse núcleo social de retorno do herói, é o pai que vivifica esse arquétipo. Mesmo nas mudanças que ocorreram devido ao movimento feminista, mulheres que encabeçam suas famílias ou mães solteiras criando seus filhos, não podemos negar que a influência patriarcal ainda é dominante. Por isso, a família identifica-se com as provas e os triunfos do pai, aguardando ansiosamente o seu retorno.
            Porém o pai da atualidade, como já citamos anteriormente, vem cumprindo sua tarefa pela metade. É bem-sucedido ao sair de casa para enfrentar o mundo externo, mas está deixando a desejar o seu retorno de transformação no mundo interno de seu lar.

O pai de hoje em dia é bem-sucedido em matar o dragão, mas não lhe foi ensinado como trazer as dádivas para casa; a segunda parte da jornada do herói foi abandonada pela coletividade (Murdock, 1994).

                Focando nossa discussão nas meninas, filhas de seus “pais-heróis”, é interessante pensar qual imagem esses pais, que cumpriram apenas metade de suas jornadas, terão para esse feminino em formação. O poeta Robert Bly reflete, “a menina recebe o temperamento de seu pai, mas não os seus ensinamentos”. E isso é grave.
            O pai, idealizado como herói, e particularmente se for ausente (como muitos que vemos por ai), é inventado pela criança para ser o que ela desejar que ele seja, muito mais poderoso, muito mais sábio, muito mais viril e muito mais amoroso do que qualquer homem pode ser. Nesta relação pode haver pouco relacionamento real entre pai e filha.
            A filha passa a idolatrar a imagem que fez de seu pai, e não o pai real. Talvez ela nunca venha a conhecer o homem que ele realmente é. E isso não faz com que ele seja menos herói, e sim o torna mais humilde e verdadeiro.
            Ela toma para si aspectos de sua jornada heroica e esforça-se por imitá-lo, a fim de trazê-lo para perto e ser como ele, porém ao mesmo tempo que o movimento para fora acontece, ela se abstém de elaborar o movimento para dentro e se esquece  de sua natureza feminina.
            Tais filhas se tornam assim filhas do patriarcado, apesar de estarmos cada vez mais conscientes da opressão que este coloca sobre o feminino, é preciso ficar de olho para não projetarmos nossa inteligência, criatividade, força e sentimentos sob o crivo de aprovação dos homens.
            Marion Woodman (1990), citada por Murdock (1994), nos ilumina:

Uma mulher que tenha espelhado seu pai desde a infância... tem pouca, se tiver alguma, identidade feminina baseada em seu próprio corpo feminino, e sua auto-imagem depende dos sorrisos de aprovação dos homens. Ela está sempre encenando, quer esteja calçando delicados Guccis ou resistentes mocassins. Profissional e socialmente, torna-se automaticamente o espelho no qual homens vêem sua mulher interior. Numa relação íntima, esculpe a si mesma para manifestar a imagem de seu amante.



Referência:
M., Murdock. A filha do herói. Summus Editorial: 1994. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

A ironia do caminhar da vida

Diálogos

Perguntaram ao líder Budista Dalai Lama:
- O que mais te surpreende nos homens?

Ele responde:
- Os homens que perdem a saúde para juntar dinheiro e depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. Por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem o presente, de tal forma que acabam por nem viver no presente nem no futuro. Vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido.

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Tão atual, tão verdadeiro.
Como você está aproveitando a sua existência?






quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Viver é o que acontece entre momentos de alegria e dor

         Se repararmos bem, ao longo dos anos vamos passando, junto aos nossos amigos, por fases parecidas.
Lembro-me da fase das bandas, em que todo mundo gostava da mesma música. Da fase das festas de 15 anos, em que praticamente todo final de semana alguém fazia aniversário. Da sofrida fase do vestibular, em que só se falava qual era a universidade escolhida de cada um. Da fase do primeiro beijo, alegria para os que já tinham tido experiência e algo próximo ao desespero para aqueles que ficavam de fora do acontecido. Da fase de mudar de cidade. Da fase de mortalizar a mãe e o pai.
            Por mais engraçado que seja, as fases da vida tem uma semelhança muito próxima com as do videogame, (talvez seja por isso que os tais jogos façam tanto sucesso). A cada fase que passa vem um desafio ainda mais difícil. Um misto de momentos maravilhosos e de profundo despertar de consciência.
            Nas fases maravilhosas, a vida se assemelha ao bônus de recolher todas as moedinhas possíveis naquele seu joguinho preferido. Puro deleite sem se preocupar com estratégias ou com perigos, apenas a magia de poder encher os bolsos de preciosidades que serão usadas depois. No mundo real, promoção no emprego, namoro novo, compra de uma casa e toda a esperança de que aquilo será eterno.
            Como Ícaro, caimos na outra realidade.
A fase do temido “chefão”. Entramos em desespero e recorremos aos amigos que estão passando pelos mesmos momentos, esperando dicas maravilhosas capaz de fazer-nos pegar um atalho. Diferente do videogame, todas as moedinhas acumuladas anteriormente parece não servir de nada. Deprimimos. Choramos. Lamentamos. Essa fase parece ser eterna. Sofremos. Olhamos no relógio. Nada. Esquecemos que momentos atrás estávamos comemorando. Queremos passar de fase o mais depressa quanto for possível. Acontece que na vida é a elaboração desse sofrimento que nos dá passe para a próxima etapa. Só assim.
O jogo da vida e a vida no jogo são feitas de ciclos. Um passo após o outro, e a caminhada continua.
Um conto muito famoso, de autoria desconhecida, ilustra o que venho querendo dizer:

Era uma vez um rei muito poderoso que tinha tudo na vida, mas sentia-se confuso. Resolveu consultar os sábios do reino e disse-lhes:

- Não sei por que me sinto estranho e preciso ter paz de espírito. Preciso de algo que me faça alegre quando estiver triste.

Os sábios resolveram dar um anel ao rei, desde que o rei seguisse certas condições:

- Debaixo do anel existe uma mensagem, mas o senhor só deverá abrir o anel quando estiver num momento intolerável. Se abrir só por curiosidade, a mensagem perderá o seu significado. Quando TUDO estiver perdido, a confusão for total, acontecer a agonia e nada mais puder ser feito, aí você deve abrir o anel.

O rei seguiu o conselho. Um dia o país entrou em guerra e perdeu. Houve vários momentos em que a situação ficou terrível, mas o rei não abriu o anel porque ainda não era o fim. O reino estava perdido, mas ainda podia recuperá-lo. Fugiu do reino para se salvar. O inimigo o seguiu, mas o rei cavalgou até que perdeu os companheiros e o cavalo.
Seguiu a pé, sozinho, e os inimigos atrás; era possível ouvir o ruído dos cavalos. Os pés sangravam, mas tinha que continuar a correr. O inimigo se aproxima e o rei, quase desmaiado, chega à beira de um precipício. Os inimigos estão cada vez mais perto e não há saída, mas o rei ainda pensa:

- Estou vivo, talvez o inimigo mude de direção. Ainda não é o momento de ler a mensagem.

           Olha o abismo e vê leões lá embaixo, não tem mais jeito. Os inimigos estão muito próximos, e aí o rei abre o anel e lê a mensagem: "Tudo passa". De súbito, o rei relaxa. Isto também passará e, naturalmente, o inimigo mudou de direção.
O rei volta e tempo depois reúne seus exércitos e reconquista seu país. Há uma grande festa, o povo dança nas ruas e o rei está felicíssimo, chora de tanta alegria e, de repente, se lembra do anel, abre-o e lê a mensagem: "Tudo passa". Novamente ele relaxa, e assim obtém a sabedoria e a paz de espírito.


Como aconchego ou incômodo, lembramos que a felicidade é um momento e não um estado, e que viver é o que acontece entre momentos de alegria e dor. 


quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Abrindo as portas para o mundo do inconsciente: Nise da Silveira e seu legado rebelde.

Nise da Silveira, como muitos de vocês já devem saber, foi uma psiquiatra alagoana de vanguarda. Uma das primeiras mulheres a se formar médica no Brasil, em 1926 era a única mulher de sua turma dentre 157 homens.
Sua caminhada foi dividida entre momentos frustrados e sacadas iluminadas. Nise foi presa acusada por uma enfermeira de um hospital que trabalhava de ter em sua posse livros comunistas. Esta denúncia a deixou em cárcere por 18 meses; lá conheceu Graciliano Ramos e virou uma das personagens de seu livro “Memórias do Cárcere”.
Depois que foi solta da prisão, não pôde voltar ao serviço público por uma ordem judicial devido a movimentos políticos, e de 1936 a 1944 viveu na semiclandestinidade, lendo e estudando filosofia e religião.
Em 1944 foi reintegrada e passou a trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II no bairro Engenho de Dentro no Rio de Janeiro. Lá, onde o tratamento dado aos esquizofrênicos era choque elétrico e lobotomia, Nise fica chocada e se recusa a tratar seus pacientes desta maneira.

Durante esses anos todos que passei afastada, entrou em voga na psiquiatria uma série de tratamentos e medicamentos novos que antes não se usavam. Aquele miserável daquele português, Egas Muniz, que ganhou o prêmio Nobel, tinha inventado a lobotomia. Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de cariazol. Fui trabalhar numa enfermaria com um médico inteligente, mas que estava adaptado àquelas inovações. Então me disse:
– A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque.
Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele então mandou levar aquele paciente para a enfermaria e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse: – Aperte o botão.
E eu respondi: – Não aperto.
Aí começou a rebelde.”
(Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde, fotobiografia de Luiz Carlos Mello)



           
            Por ir contra a decisão da administração do hospital e de seus colegas médicos, ela é colocada para trabalhar no Setor de Terapia Ocupacional, área do hospital que, naquele momento, era rechaçada. Lá os pacientes faziam serviços de faxina e conserto. É ali que Nise encontra combustível para tratar dos pacientes (ou clientes, como ela gostava de chamá-los), da maneira como ela acreditava, pelo afeto e pela arte.
            Nise cria no Setor de Terapêutica Ocupacional ateliês de pintura e de modelagem, dando aos clientes a oportunidade de se expressarem por imagens. As obras criadas ali, por aquelas pessoas que não tinham qualquer conhecimento técnico de pintura, eram espetaculares. Num primeiro momento muitas imagens circulares parecidas com mandalas começaram a ser feitas. Por ser uma devoradora de livros e se interessar pelas obras de Carl Gustav Jung, Nise começou a estudar o significado dessas figuras que os esquizofrênicos tanto pintavam. Decidiu escrever uma carta para Jung e anexar algumas fotos dessas pinturas, Nise classifica essa experiência como uma das mais ousadas de sua vida. O psiquiatra suíço respondeu e ali se iniciou uma séria de correspondências saborosas.
            As obras de seus clientes começam a chamar a atenção de críticos de arte, que acham tesouro das produções feitas ali. Em 1952 ela funda o Museu de Imagens do Inconsciente, que além de museu, funcionava como um centro de estudo e pesquisa, valorizando o trabalho e buscando sempre novas possibilidades para uma compreensão mais profunda do mundo interior do esquizofrênico.
            Em 1957 Nise é convidada por Jung para passar um ano estudando com ele em seu instituto na Suíça, além de expor o acervo do Museu no II Congresso Internacional de Psiquiatria. Lá, pôde trocar conhecimento e expor de forma valiosa o que vinha desenvolvendo no Brasil.
            Ao voltar desse mergulho ao mundo Suíço da psiquiatria e das conversas com Jung, Nise inaugurou um grupo de estudos de psicologia analítica em sua própria residência, grupo que ministrou até a sua morte, em 1999.
            Nise foi pioneira no tratamento de doentes mentais, usando como fonte curativa o afeto e a porta sempre aberta ao mundo do inconsciente. Provou que seu método de tratamento produziu melhora significativa na vida dessas pessoas. Pela arte, pela voz que não emitia som, por poder ouvir o outro lado, o lado interno das pessoas.

            Tive a oportunidade de visitar o Museu de Imagens do Inconsciente e divido com vocês algumas fotografias:







Veja também!
Em comemoração ao dia do Psicólogo (27 de Agosto), participei do podcast do site Cinem(ação). 
Nele, além de homenagearmos nossa profissão, fizemos excelentes indicações de filmes ligados a Psicologia!

Confira:

Referências:
NISE - O CORAÇÃO DA LOUCURA. Direção: Roberto Berliner. TV Zero, Rio de Janeiro, 2016, 108 min. 
Mello, C. L., Nise da Silveira: Caminhos de uma psiquiatra rebelde. 2014. 

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Apaixonamento e amor real: A vida depois do "foram felizes para sempre"

           Lembro-me de quando era pequena e comecei a fase das muitas perguntas e muitos porquês, perguntei a meu pai o motivo pelo qual maioria das musicas que ouvia na rádio falava sobre o amor, a paixão, o relacionamento entre casais. As crianças, apesar de serem inocentes, prestam muita atenção a sua volta e desconsertam os adultos com perguntas sagazes. Meu pai riu e me explicou que era porque esse sentimento era o mais difícil de se entender e também o mais bonito de todos. Por hora a resposta me satisfez. A questão é que cresci e pude também vivenciar tal sentimento, mais tarde me formei Psicóloga e gostaria de dividir com vocês alguns pensamentos acerca deste tema.
            Há muitas coisas a se dizer sobre o apaixonar-se. Quem nunca passou por isso, certamente tem a experiência da vida um pouco mais empobrecida. É um sentimento único, que nos proporciona emoções inesperadas e fortes, que encontram vazão na companhia da pessoa escolhida. “Ter a experiência de apaixonar-se equivale a tornar-se aberto aos assuntos do coração de maneira maravilhosa. Pode ser o prelúdio de uma expansão valiosa da personalidade e da vida emocional. É também uma experiência importante porque aproxima os sexos e inicia o relacionamento.” (Stanford, p.27).
            Acontece que os relacionamentos que se baseiam apenas na paixão nunca duram. E isso acontece por que quando o casal é submetido a prova de fogo da realidade a união não resiste. Na paixão o que acontece é que ficamos encantados com a imagem que a pessoa causa em nós e não na pessoa real. Projetamos naquele ser humano todas as imagens maravilhosas e mágicas existentes em nós, nos esquecendo que aquela pessoa é uma pessoa real, com imperfeições humanas. A paixão resiste apenas no mundo da fantasia, é digno de deuses e não de seres humanos. Quanto mais reais vão se tornando um para o outro, menor é a possibilidade de imagens fantásticas provenientes do inconsciente continuarem a ser projetadas sobre o outro e dai o estado de apaixonamento se esvai e dá lugar ao relacionamento real.
            Tal ideia não nos agrada, pelo menos não nos dias de hoje, que coloca esse estado de apaixonamento como meta de todo e qualquer relacionamento. Temos que admitir que não somos muito inteligentes em matéria de filtrar o que consumimos através da televisão e redes sociais. Muitos de nós acabam optando por continuar procurando o homem ou a mulher ideal e a garantia que de ele ou ela fará nos sentirmos felizes e realizados.
            Sanford (1987), resume:
Quando nos apaixonamos por alguém que não conhecemos como pessoa, mas por quem somos atraídos porque reflete para nós a imagem do deus ou da deusa em nossas almas, é, num certo sentido, apaixonarmo-nos por nós mesmos, apaixonar-se cada um por si mesmo, e não pela outra pessoa. Não obstante a aparente beleza das fantasias de amor que costumamos ter nesse estado de apaixonados, podemos, de fato, encontrar-nos num estado de espírito profundamente egoísta. O amor real começa somente quando uma pessoa chega a conhecer a outra, para quem ele ou ela é realmente um ser humano, e quando começa a amar esse ser humano e a preocupar-se com ele.

Crescemos acreditando que o príncipe viria num cavalo branco e nos faria feliz para sempre. Ou os homens, que ao dar um beijo na donzela adormecida a faria cair de amores por ele instantaneamente. A história do conto de fadas continua... O que será que aconteceu com o príncipe quando ele envelheceu? Ficou com barriguinha de cerveja, cabelos brancos, dor nas costas? A a princesa, será que teve filhos e assim reclamou das noites mal dormidas e acordou com olheiras, não deu tempo de secar o cabelo e ficou cheio de frizz?
Ser capaz de um amor real significa amadurecer e se responsabilizar pelas próprias felicidades e infelicidades, sem esperar que venha um outro nos fazer feliz ou triste, não culpa-lo pelas más indisposições ou frustrações. É claro que relacionamentos não são fáceis, mas nos responsabilizarmos como seres humanos adultos pelas nossas emoções é um caminho pelo qual a capacidade de amar amadurece.



Referências
Sanford, J. A., Os Parceiros Invisíveis. São Paulo: Paulus, 1987. 

            

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Ser simplesmente humano: Pensamentos da Monja Coen

              Monja Coen Sensei, fez seus votos monásticos em 1983 e desde então vive esta prática religiosa. Antes de se tornar monja, foi jornalista do Jornal da Tarde, morou na Inglaterra e em Los Angeles nos Estados Unidos. Foi neste ultimo país que iniciou sua prática. Tem uma filha que ficou aos cuidados de sua mãe, enquanto ela buscava seu caminho pelo mundo.
            Mudou-se para o Japão, onde morou durante 8 anos no mosteiro feminino de Nagoya, tendo-se graduado monja especial (Tokuso), habilitada a ser professora do Darma Budista de monjes, monjas, leigos e leigas.
            Coen casou-se com um monje japonês e em 1995, foram nomeados Missionários da tradição Soto Shu para o Brasil e serviram a comunidade do Templo Busshinji, na cidade de São Paulo até o ano de 2001. Se separaram e Coen passou a morar no Brasil definitivamente.
            Através de seus ensinamentos, a monja tenta nos passar seu conhecimento de alma
            Em entrevista para GNT em 2006, a monja nos dá alguns ensinamentos, os quais reproduzo trechos aqui:

A irritação nos torna maléfica quando ela nos controla. É diferente quando você se deixa controlar por ela. Se deixar controlar pela raiva, a raiva engole você. Mas quando você percebe, isso me incomoda, isso não está bem, isso precisa ser diferente, eu vou procurar meios não violentos de transformar.

É preciso que a gente sofra as dores do mundo, sinta as dores do mundo. A idéia é que vai ficar tudo bem, tudo zen, isso é errado. Nós temos que estar sentindo a compaixão. Isso significa que eu sinto com você, eu sinto a sua alegria, eu sinto a sua dor e por sermos iguais eu vou procurar meios de transformar. E não porque eu não sinto nada e está todo mundo sofrendo, todo mundo superior, isso não é iluminação.

O que temos que perceber é que somos perfeitos como somos e somos um processo em transformação. Havia um monge no século VII que foi da índia para a china que se chamava Bodhidharma, ele dizia “cai sete vezes, levanta-te oito”. Erro, vou tentar outra vez, fico irritado, percebo a minha irritação. E o que é a irritação? Onde é que ela começa? Ela é quente? Ela é fria? Meu coração acelera? Minha respiração muda? Há contração muscular? Então o nosso trabalho é ficar presente na emoção. Que emoção é esta? Eu, ser humano, tenho essa emoção, que bom. Nós temos inúmeros botõezinhos, e quem nos conhece as vezes mais próximo ainda é capaz de tocar com mais assertividade aquele que nos irrita e incomoda. Por que? Por que na hora que eu incomodo você, você é minha.

Nós somos seres humanos, independente se somos monges ou não somos monges. Antes de tudo, somos humanos.

(falando sobre o voto de castidade pessoal que havia feito há anos e quando conheceu um monge japonês, com o qual viria a se casar) Acho que na nossa vida, quando queremos ficar muito rígidos, muito duros, alguma coisa vem e mexe para dizer “não crie barreiras, não se feche, não se limite”. Então eu deixei aberto e nos casamos.

            Monja Coen tem a tarefa que espalhar seu conhecimento, de tocar as pessoas, de tirá-las da rigidez e da monotonia do dia a dia. Você já parou para pensar em quais momentos você faz uma reflexão sobre a sua vida?
        Ao ouvi-la, através de seu relato muitas vezes pessoal, percebemos que ela é humana, que é como a gente. Tem suas dores, também caiu em seus buracos, também ficou na escuridão. Recebemos um convite da vida, sermos apenas o que somos.
            Coen é, antes de mais nada, simplesmente humana. Que sorte a nossa!



Ficou curioso?
Assista os vídeos:


terça-feira, 17 de maio de 2016

The Walking Dead: Seríamos nós os "mortos-vivos"?

              Tenho certeza que você está acompanhando alguma série de TV. Ou se não acompanha, tem um amigo que é absolutamente viciado em alguma e vibra a cada novo episódio ou a cada novo acontecimento da trama.
            São muitas as séries de sucesso: Game of Thrones, Breaking Bad, Grey´s Anatomy, How to get away with murder, Orange is the new black, Pablo Escobar: El Patrón del Mal. Mas pretendo falar aqui hoje sobre uma em especial – The Walking Dead.
            Resumidamente a série conta a história das semanas e meses que se seguem a um apocalipse zumbi pandêmico e acompanha um grupo de sobreviventes. Dirigidos pelo agente de polícia Rick Grimes, eles viajam em busca de um local seguro e a salvo. Sofrem, porém, diariamente grande pressão da luta contra a morte, o que se torna num fardo bastante pesado, fazendo com que algumas pessoas desçam ao mais baixo nível da crueldade.
            Pelo título da série e pelo que ela inicialmente parece oferecer, são poucas as pessoas que se sentem atraídas para assisti-la, achando que será apenas mais uma das histórias em que zumbis ficam vagando a procura de cérebros para se alimentarem, muita explosão de miolos e violência gratuita. Acontece que The Walking Dead é uma série que retrata não a relação entre seres humanos e zumbis e sim entre seres humanos e seres humanos.
À medida que Rick (que é o protagonista) luta para manter a sua família viva, acaba por descobrir que os sobreviventes podem ser bem mais perigosos do que os zumbis que vagueiam pelo nosso planeta.
O que verdadeiramente chama a atenção e nos faz refletir é o fato de expor de maneira extrema a luta pela sobrevivência. Tanto aqui como no mundo pós-apocalíptico, tem-se que ser mais esperto do que os outros, se não, paga-se um alto preço. Aqui, no mundo real, usamos discursos e cargos públicos; lá, armas e grades. Sem leis e sem religião, com o super-ego diluído e ausência de punição, a consciência se torna livre. Encontram-se livres na mente, estão porém, presos no corpo.
Teoricamente poderiam inventar um jeito novo de se relacionarem, afinal o que existia até então virou pó e ficou no passado. Acontece que temos muito mais da humanidade do que gostaríamos e a relação entre os vivos torna-se, até certo ponto, caótica. A luta pelo lugar tranquilo se dá ao som de tiros.
No livro “A arte da guerra” de Sun Tzu, é colocado já nas primeiras páginas um pensamento que diz que o objetivo de toda guerra é a paz. Estão dizendo que fazemos guerra, matamos pessoas, enviamos nossos homens e damos armas a eles para que matem outros homens, compramos munição, desenvolvemos ciência cada vez mais avançada para criar meios cada vez mais eficazes de matar, para no final disso ter paz? Contraditório. Parece-me que não cabem tantos egos e tantos desejos dentro de um único mundo.
Na série, os grupos de sobreviventes não confiam uns nos outros, se saqueiam, roubam os lugares seguros, mentem, racionam comida e água. Inicialmente eram os zumbis os seres a serem aniquilados a fim de manter a ordem, era deles o medo; percebemos então, que os mais temidos são na verdade os seres humanos.

Quem fala mais de nós, os zumbis ou os vivos?



Referências:
http://www.recantodasletras.com.br/artigos/4442552 (Acessado em 10 de Maio de 2016)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Qual a imagem refletida no seu espelho? Harry Potter e seu mundo fantástico.

Harry Potter foi um bruxo muito conhecido, seu primeiro livro foi lançado em 1997 (no Brasil, 1999). Foi um personagem que encantou crianças e adolescentes, demonstrando que a geração joystick também se dava bem com a letra impressa, o que faltava mesmo era uma ficção tão intrigante a ponto de ser devorada pelos leitores mirins.
Difícil encontrar alguém que não conheça Harry, mas para aqueles que não tiveram a oportunidade de lê-lo, lá vai um pequeno resumo:
Harry é filho de um casal de bruxos corajosos. Sua mãe era bruxa, filha de pais trouxas (denominação para aqueles que não tinham o dom da bruxaria), e seu pai vinha de uma família de puro sangue. A trama acontece principalmente por uma disputa política, em que o vilão Lord Voldemort quer a qualquer custo impor suas modalidades de funcionamento autoritárias, bélicas e perversas. Seus seguidores se utilizam de assassinato, injustiça e muito jogo sujo para conseguir chegar ao poder. Quando Harry era bebê, seus pais foram assassinatos por Voldemort. O vilão foi até a casa dos Potter com o objetivo de matar a criança, pois existia uma profecia que dizia que Harry e Voldemort não poderiam coexistir, ou seja, um dos dois deveria morrer para que o outro pudesse viver. Acontece que ao lançar um feitiço para matar o protagonista, algo errado aconteceu. Os pais de Harry morreram tentando protegê-lo e o feitiço lançado voltou-se contra Voldemort, que ficou muito fraco a ponto de quase sumir. No bebê-Potter restou uma pequena cicatriz em formato de raio na testa e em tal marca a ligação entre os dois se concretiza.
Harry, órfão, é então cuidado pela família da tia, todos trouxas. Não sabendo de sua linhagem bruxa até o final de sua infância, ele vive uma vida normal. A saga começa no aniversário de 11 anos de Harry, em que recebe uma carta da escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts para iniciar seus estudos. Ao todo são 7 livros, um para cada ano na escola.
Toda a história é repleta de seres fantásticos, fotos que se movimentam, feitiços para consertar num toque braços e ossos quebrados, campeonatos de Quadribol – o esporte dos bruxos, espelhos que refletem desejos.
E em cima deste ultimo item mágico é que vamos nos debruçar. O Espelho de Ojesed. Corso (2006), narra brevemente como foi a descoberta do espelho:

Potter corria pela escola, fugindo de alguma das peripécias que tinha aprontado e oculto por uma capa que o tornava invisível. Quando entrou num aposento, uma sala de aula abandonada, deparou-se com um objeto que parecia discordar do contexto: um majestoso espelho de moldura dourada. Ainda invisível, ele viu o reflexo de sua imagem e de umas dez pessoas, que logo concluiu serem seus pais acompanhados dos parentes bruxos de linhagem paterna, de quem crescera afastado, aquela família que perdeu com a morte de seus pais. De dentro do espelho, uma mulher, sua mãe, lhe abanava simpaticamente. Triste, constatou que “Ela e os outros só existiam no espelho”. E correu para chamar seu amigo Rony, que viu no espelho uma cena totalmente diferente: estava refletido seu futuro como chefe dos monitores e capitão do time de quadribol de Hogwarts.

            Ojesed quer dizer “desejo” ao contrário. A palavra invertida faz alusão a inversão da imagem. Harry vê refletido não sua aparência, mas seu desejo de essência. De fora para dentro. De dentro para fora.
            Quais são os momentos em que nos deparamos com essa imagem refletida? Ou o que a reflete para nós? São espelhos mágicos, amigos sinceros e psicólogos em seus consultórios... Naquela palavra, naquela frase, naquela rua e naquele tempo, encontramos a imagem refletida. Conseguimos então olhar por detrás dela? Ou continuamos rasos e espelhados pela aparência de fora: alto, baixo, gordo, magro, triste, depressivo, melancólico. O que existe dentro desse corpo? Quais os desejos dessa alma?

            A autora oferece as crianças à possibilidade de reflexão. Ao estar frente a frente consigo mesmo, o que se torna mais importante? O maior segredo que cada um de nós carrega na alma vem a tona quando as aparências se tornam invisíveis.


Referências:
Corso, D. L.; Corso, M. Fadas no Divã: Psicanálise nas histórias infantis. São Paulo: Artmed, 2006. 



terça-feira, 15 de março de 2016

Amy Winehouse: quando a alma encontra voz.

Amy Winehouse, Britânica, cantora. Morreu aos 27 anos vítima de ingestão de álcool após um período de abstinência. O corpo dela foi encontrado em meio a garrafas vazias, o laudo de sua morte atesta “resultado de intoxicação por álcool”.
Amy foi dona de uma voz de dar inveja. Fez um tremendo sucesso com seu segundo álbum – “Back to Black” (lançado em 27 de Outubro de 2006), os quais muitos de vocês devem ter ouvido e acredito que dificilmente passaram ilesos por ele.
Back to Black tocou tanto o coração das pessoas a ponto de torná-lo em 2011 o álbum mais vendido na história do Reino Unido (hoje superado pelo álbum 21 da cantora Adele). No ano de 2007, liderou a lista dos mais vendidos em nível global, com mais de seis milhões de réplicas vendidas em todo o mundo, e foi o segundo mais vendido em nível digital no iTunes, enquanto em 2008 foi o segundo mais vendido do mundo, com outras 5.100 milhões de unidades.
O álbum foi escrito pela dor de Amy. Na ocasião tinha rompido com seu namorado, Blake Fielder-Civil. Ele tinha voltado com sua ex-namorada, deixando Amy desconsolada. Todas as suas músicas são autobiográficas e contam de maneira poética todo seu sofrimento. Segundo as palavras de seu pai: “As músicas eram incríveis, mas ela comeu o pão que o diabo amassou para escrevê-las”.
De alguma forma, as pessoas que ouvem sua música são tocadas pela maneira como Amy escreve, pela autenticidade de sua culpa, dor e pesar. Todos nós já passamos por dores parecidas, desencontros amorosos e relação familiar conturbada. Ela cantava a sua vida e é inevitável que nós nos apaixonemos pela veracidade da escuridão. Escuridão esta, que muitas vezes não admitimos nem para nós mesmos.
Boa parte de sua genialidade esteve em conseguir transformar em palavras o que estava se passando dentro dela. Artisticamente não há outra forma de fazer isso se não através de poesia, música e grafismo. A linguagem da alma não é racional e ela parece ter percebido isso muito bem. Segundo alguns de seus próprios relatos, Amy conta que as letras de Back to Black saíram espontaneamente. Para salvar sua própria alma, Amy foi chamada a escrever, mas do mesmo modo, o sucesso do disco que a fez cair.
Quando alguém consegue transmitir o que a alma sente, o momento se torna numinoso. Ouvimos, e ouvimos, e ouvimos suas canções a fim de fazer nosso coração escutar e dar vazão ao nosso sofrimento junto com elas. Por ser tão sensível, Amy conseguiu fabricar um dreno para falar da sua dor sem medo. Os que a escutam fazem uso desse instrumento. Há identificação com as letras, pois elas falam de cada pessoa que a ouve. Isso lhe custou parte da vida, pois cada vez que Amy subia no palco e cantava suas músicas, revivia seu momento escuro.
São os poemas que diluem a dor. Pode ser que se Amy tivesse escolhido outro caminho para escoar sua alma, ela tivesse partido a muito mais tempo. Ou ainda estaria aqui. Não sabemos. O que sabemos é que Winehouse era diluída. No poema, nas lágrimas, no álcool.
A poetisa Viviane Mosé fala através da delicadeza de um poema sobre a diluição e a coagulação, princípios alquímicos que resumem o caminhar da vida.

A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos.
Abscessos, tumores, nódulos, pedras…
São palavras calcificadas, poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre…
Poderiam um dia ter sido poema, mas não…
Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa.
Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.
Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor.
Lágrima é raiva derretida, raiva endurecida é tumor.
Lágrima é alegria derretida, alegria endurecida é tumor.
Lágrima é pessoa derretida, pessoa endurecida é tumor.
Tempo endurecido é tumor, tempo derretido é poema.
E você pode arrancar os poemas endurecidos do seu corpo
Com buchas vegetais, óleos medicinais, com a ponta dos dedos, com as unhas.
Você pode arrancar poema com alicate de cutícula, com pente, com uma agulha.
Você pode arrancar poema com pomada de basilicão, com massagem, hidratação.
Mas não use bisturi quase nunca,
Em caso de poemas difíceis use a dança.
A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo.
Uma forma de soltá-los das dobras, dos dedos dos pés, das unhas.
São os poemas-corte, os poemas-peito, os poemas-olhos,
Os poemas-sexo, os poemas-cílio…

RIP, Amy Winehouse.

(14/09/1983 – 23/07/2011)



Referências:

Amy, Direção: Asif Kapadia, Film4 productions, United Kingdom, 2015, 128 min.
Winehouse, M., Amy, minha filha. Rio de Janeiro: Record, 2012.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Back_to_Black (Acessado em: 15 de Março de 2016).

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Submundo das Princesas Disney e Perséfone: Achou que fosse somente rosa?

Você já parou para se perguntar o porquê as princesas da Disney tiveram histórias tão trágicas? Maça envenenada, destrato por parte da madrasta e das meia-irmãs, ficar trancafiada no calabouço sozinha. Tinham uma vida feliz no campo e ao lado de seus pais para de repente serem envolvidas pela fumaça escura do mal. Pobrezinhas...
A deusa Perséfone, que os romanos chamavam de Prosérpina ou Core é filha de Deméter (já falamos dela aqui, se quiser saber um pouquinho mais vá para – Síndrome do ninho vazio e Deméter: imagens de pais nos quartos desocupados de seus filhos.) e Zeus.
Perséfone sempre foi cuidada por sua mãe, era esta quem dizia o que deveria fazer e quando fazer. A jovem ainda não sabe quem ela é e fica inconsciente de seus desejos e forças; por ser bastante indecisa, vive esperando que alguma coisa ou alguém transforme sua vida. Como filha, esta deusa só quer agradar sua mãe, ser uma boa menina, ser educada, obedecê-la e respeitá-la acima de tudo. Apesar de ser muito bonita, ainda não se vê como mulher e é provável que sua mãe a ache nova demais para namorar e não aceite o cortejo dos homens.
Como com as princesas Disney, Core é uma filha exemplar, inocente colhe flores no jardim. De modo parecido como acontece nos desenhos, no mito da deusa ela é brutalmente raptada por alguém do submundo. A Cinderella caiu nas garras da madrasta, Branca de Neve na lábia do lobo mal, João e Maria no porão da bruxa de doces e, Core, no inferno de Hades.
Parece que essas doces princesas são arrancadas de seu mundo infantil através de uma experiência com o mundo escuro. No mito de Perséfone não foi diferente. Sua história foi a seguinte:
Core foi roubada por Hades enquanto passeava nas campinas e levada para o submundo. Sua mãe, Deméter, ficou desolada e a procurou por todo o Olimpo, como era Deusa da agricultura e do cereal, a terra começou a ficar infértil e estéril, pois ela não tinha tempo para cuidar de seus afazeres enquanto buscava sua filha. Zeus vendo que ficariam sem alimento, conta a Deméter sobre o paradeiro de sua filha e esta descobre sobre Hades. Hermes é incumbido de descer até os infernos e trazer Core de volta.  Chegando lá encontra Core desolada, faz um acordo com Hades e ele a deixa partir, antes, contudo oferece a jovem algumas sementes de romã e ela as come. Por ter comido algo, conclui-se que não tinha rejeitado Hades por completo e assim estabeleceu-se um acordo que ela ficaria parte do ano no submundo quando seria Perséfone e o restante com seus pais, quando seria a jovem Core.  
Com a visita ao submundo, parece que Core dá vida a uma outra dentro dela, era dependente e indecisa, mas antes de sair da escuridão faz uma escolha por si-mesma alimentando-se e nutrindo-se de sua outra parte, da semente que o rei do inferno lhe ofereceu. Passa assim a sair do colo integral de sua mãe para seguir seu caminho sombrio como rainha.
            Tanto as princesas como Core tiveram que cair da dualidade mãe-filha para aprender um pouco sobre o mundo da terra. Enquanto protegidas pela arredoma familiar, pouca coisa a penetra. Com um movimento de inteireza é arrancada da indiferenciação infantil e colocada em um lugar de sujeito encarnado.
No “mundo real” deve-se aprender a estabelecer e cumprir compromissos e viver de acordo com eles, cumprir prazos, satisfazer prazos de entrega, permanecer em um emprego, tarefas estas que são difícil para a criança que quer colo e que brinca na vida.
            O “feliz para sempre” fica próximo da verdade quando o caminho é essência. Esse ditado só fica completo quando entendemos que ele está falando da plenitude, da inteireza. E o inteiro não é feito só de ‘parte’ boa, e sim da mistura do bom e do mal, do mundo superior e inferior, dos céus e dos infernos.




Referência: 
Bolen, J. S. As Deusas e a Mulher: nova psicologia das mulheres. São Paulo: Paulus, 1990. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Síndrome do ninho vazio e Deméter: imagens de pais nos quartos desocupados de seus filhos.

Síndrome do ninho vazio é aquela fase em que os filhos saem de casa e quando a mãe, que cuidou e nutriu seus bebês fica sem saber o que fazer com a ausência deles.
São por muitos motivos para a saída dos filhos de casa, faculdade, casamento, quando vão para outro país, ou mesmo quando vão simplesmente morar sozinhos. A questão é que os pais, mas principalmente a mãe, por que é dela que vamos falar mais, perdem um relacionamento importantíssimo. A mãe foi figura maternal e além da perda da pessoa e do relacionamento, falamos também da perda de seu papel de mãe; papel este que lhe deu sentido de poder, importância e significado para sua vida.
As mulheres que mais sofrem com o ninho vazio são as visitadas pela deusa Deméter. Esta deusa é a do cereal, da colheita, da mãe. Sua vida faz muito mais sentido e é preenchida quando exerce o papel de cuidadora e nutridora, se sente feliz por estar grávida, gerar filhos e cuidar deles. Muitas vezes esse arquétipo constela em outras áreas, no trabalho, por exemplo, quando escolhe profissões ligadas a assistência, ajudar pessoas a estarem bem e a crescerem. Isso traz muita satisfação para esta deusa.
Mães sofrem muito com a ida de seus filhos para longe. Acostumadas a estar com eles, vê-los todos os dias, cuidar deles, se preocupar, saber onde estão. Muitas delas desejam um filho desde quando podem lembrar-se, ninando bonecas, sendo “mamãezinha”. A ausência desta figura que ela depositou tanta expectativa, tanto apoio, tanto amor, pode causar nela um quadro depressivo.
Quando o arquétipo da deusa Deméter chega ao seu extremo, a mãe torna-se deprimida, incapaz de agir, tudo parece triste e improdutivo. O mundo fica sem significado. Reagem de forma agitada ou apática, em ambos os casos expressa sua mágoa, pois uma fonte de significado vital foi afastada.
Um estudo muito interessante conduzido pela fotógrafa Dona Schwartz, nos retrata como ficam a casa dos pais depois que os filhos partem. Na realidade como ficam os quatros destes últimos, quando não estão mais ocupando-os. Dona reparou que ao contrário da preparação que existe para a chegada de um bebê, os pais não preparam a saída.

“Em algumas das casas, as pessoas não precisam do espaço do quarto e, por isso, simplesmente o deixam fechado e intacto. Em outras, onde o espaço faz falta, há um dilema entre aproveitá-lo ou deixá-lo guardando memórias. Já a resposta emocional de cada pai é muito variada – desde os pais que sentem algum alívio e liberdade, aos que sofrem com a partida.” (Viegas, 2014)

Algumas das fotos:
Pam e Bill, 2 meses da partida de seu filho

Amy e Andy, 2 anos

Kathy e Lyonel, 8 meses

Chris e Susan, 7 meses

Lollie e Alan, 3 meses

Jean, 2 anos

Gloria e Alan, 5 anos


             A mulher tipo Deméter que sofreu a independência de seu filho, pode se tornar angustiada e deprimida. A perda de algo de valor se reflete em uma vida vazia e monótona. Como acontece em cada mitologia divina, é possível uma mudar se “acomodar” nesta fase e viver a depressão por muito tempo, mas é possível também mudar para outro padrão de mito e desenvolver-se. Algumas destas mulheres nunca se recuperam, mantendo suas vidas amargas e improdutivas.
            A recuperação deste estado depressivo é possível e o crescimento o acompanha. O tempo passa. Essa mãe começa a reparar que o céu é azul, ou é tocada de compaixão por alguém, ou retoma uma atividade há muito tempo perdida. Descobre que existe energia.
            A mulher volta para ela própria, cheia de vitalidade e generosidade, reunindo aquele aspecto de si mesma que estava esquecido. Emerge ai uma nova pessoa, após o período de sofrimento nasce uma mulher com maior sabedora e compreensão espiritual. Aprende que pode viver através do que quer que aconteça, sabendo que após o inverno vem a primavera e que a experiência humana e o amadurecimento seguem certos padrões. 

Referência: 
Bolen, J. S. As Deusas e a Mulher: nova psicologia das mulheres. São Paulo: Paulus, 1990. 
http://www.hypeness.com.br/2014/02/sindrome-do-ninho-vazio-serie-fotografica-mostra-pais-nos-quartos-dos-filhos-que-sairam-de-casa/