quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O legado incompleto do pai-herói para o feminino em formação

Ouvimos muito falar nos heróis. Hoje em dia o contato que temos com essa figura é através dos desenhos da Marvel ou então nos videogames. Mas essa história começou muito tempo antes. Em incontáveis culturas e mitologias, o herói teve papel de destaque. Em geral tiveram um tipo de nascimento incomum, travando batalhas que vão além de seus limites pessoais para assim alcançar um nível de consciência mais elevado.
            Um dos principais papéis desse arquétipo é representar uma força unificadora em sua comunidade, capaz de promover um eixo de identificação com seus membros. A tarefa dupla do herói é: retirar-se da vida em sociedade, confrontar os mistérios da vida, da morte e do amor, para depois retornar transformado em “aquele que traz a vida”. Joseph Campbell dá esse nome a ele, pois seu retorno beneficia e renova a todos. A comunidade festeja sua volta.
            Como não vivemos mais em grandes grupos, podemos dizer que esse contato social próximo é feito através da nossa família. June Singer (1990), citada por Murdock (1994), nos diz que o arquétipo do herói sofreu mudanças dramáticas com a modernidade. Hoje, segundo ela, o herói é avaliado pelo quanto fizeram sua empresa crescer ou quão fértil é sua corporação, empresas essas que foram concebidas e desenvolvidas por indivíduos que não deixaram nada atrapalhar o caminho rumo à realização.
            O que falta ao padrão heroico atual é retornar para sua comunidade transformado pelas experiências que teve. A jornada ficou incompleta.
            Se retomarmos a ideia de que a família é esse núcleo social de retorno do herói, é o pai que vivifica esse arquétipo. Mesmo nas mudanças que ocorreram devido ao movimento feminista, mulheres que encabeçam suas famílias ou mães solteiras criando seus filhos, não podemos negar que a influência patriarcal ainda é dominante. Por isso, a família identifica-se com as provas e os triunfos do pai, aguardando ansiosamente o seu retorno.
            Porém o pai da atualidade, como já citamos anteriormente, vem cumprindo sua tarefa pela metade. É bem-sucedido ao sair de casa para enfrentar o mundo externo, mas está deixando a desejar o seu retorno de transformação no mundo interno de seu lar.

O pai de hoje em dia é bem-sucedido em matar o dragão, mas não lhe foi ensinado como trazer as dádivas para casa; a segunda parte da jornada do herói foi abandonada pela coletividade (Murdock, 1994).

                Focando nossa discussão nas meninas, filhas de seus “pais-heróis”, é interessante pensar qual imagem esses pais, que cumpriram apenas metade de suas jornadas, terão para esse feminino em formação. O poeta Robert Bly reflete, “a menina recebe o temperamento de seu pai, mas não os seus ensinamentos”. E isso é grave.
            O pai, idealizado como herói, e particularmente se for ausente (como muitos que vemos por ai), é inventado pela criança para ser o que ela desejar que ele seja, muito mais poderoso, muito mais sábio, muito mais viril e muito mais amoroso do que qualquer homem pode ser. Nesta relação pode haver pouco relacionamento real entre pai e filha.
            A filha passa a idolatrar a imagem que fez de seu pai, e não o pai real. Talvez ela nunca venha a conhecer o homem que ele realmente é. E isso não faz com que ele seja menos herói, e sim o torna mais humilde e verdadeiro.
            Ela toma para si aspectos de sua jornada heroica e esforça-se por imitá-lo, a fim de trazê-lo para perto e ser como ele, porém ao mesmo tempo que o movimento para fora acontece, ela se abstém de elaborar o movimento para dentro e se esquece  de sua natureza feminina.
            Tais filhas se tornam assim filhas do patriarcado, apesar de estarmos cada vez mais conscientes da opressão que este coloca sobre o feminino, é preciso ficar de olho para não projetarmos nossa inteligência, criatividade, força e sentimentos sob o crivo de aprovação dos homens.
            Marion Woodman (1990), citada por Murdock (1994), nos ilumina:

Uma mulher que tenha espelhado seu pai desde a infância... tem pouca, se tiver alguma, identidade feminina baseada em seu próprio corpo feminino, e sua auto-imagem depende dos sorrisos de aprovação dos homens. Ela está sempre encenando, quer esteja calçando delicados Guccis ou resistentes mocassins. Profissional e socialmente, torna-se automaticamente o espelho no qual homens vêem sua mulher interior. Numa relação íntima, esculpe a si mesma para manifestar a imagem de seu amante.



Referência:
M., Murdock. A filha do herói. Summus Editorial: 1994.