Pensando o consultório como um recorte da vida, em que contamos diante de
alguém uma crônica sobre nossa semana, uma cena do nosso dia, uma dor da nossa
alma, são inúmeros os temas que permeiam nossa caminhada. Porém, um tema em
especial, nos toca de um jeito também especial. O luto é um assunto amargo, mas
que precisa ser falado, destilado. Ele nos mostra de modo cru o outro lado da
vida, a morte. Vamos aprendendo a ver de forma diferente, pois já não somos
mais os mesmos.
Renascer desse
labirinto pode ser visto como uma tarefa heroica. Cris Guerra, uma publicitária
que perdeu o marido antes de seu filho nascer, escreve lindamente sobre o luto
de seu marido e apresenta a seu bebê o pai que ele não teve a oportunidade de
conhecer. Com o coração dolorido e as lágrimas incessáveis, ela foi
reaprendendo a olhar para o mundo e frisa: importante é “Viver o luto para não
viver de luto”.
Acordar. Respirar. Pensar. Existir. Não há um verbo que não doa durante
o luto. Talvez dormir alivie, que é quando a dor adormece. Momento em que o
medo desperta: será preciso enfrentar o dia seguinte.
Perder quem amamos é
morrer um pouco, mesmo que o coração insista em bater. O luto nos torna um
lugar ruim. Queremos fugir de nós mesmos, emprestar outra vida, perder a
memória, trocar de papel. Qualquer coisa que nos tire a dor com a mão, que nos
salve do horror de sentir que alguém foi amputado de nós. Não há alívio
imediato.
A morte é uma verdade disfarçada de
absurdo. Não se arrepende, não volta atrás, é desfecho. O verdadeiro “para
sempre”. É telefone que não toca, silêncio que ensurdece, pesadelo que não
acaba, falta que jamais deixará de ser.
Enlutar-se é se mudar
para uma espécie de cela blindada, da qual saímos somente para intermináveis e
dolorosos banhos de sol. Uma solitária para a qual queremos voltar logo
– embora triste e sombria, ela ainda é o lugar onde nos sentimos menos
desconfortáveis.
Eu me lembro de vagar
pela cidade como numa cena sem áudio. Olhava ao redor e me perguntava com que
direito as pessoas sorriam, se dentro de mim as luzes estavam apagadas. É assim
até que a gente se acostume. A morte se repete muitas vezes. Ao acordar, está
lá a morte de novo. A cada lembrança,
outra morte. Até que em nós ela morra de fato — e isso demora.
Quando meu filho nasceu
foi parecido. Só que era vida. Toda hora a vida de novo. A cada instante olhar
e ver: nasceu, é meu filho. Respira, mexe, chora, mama, é vida.
Se nascimento e morte são duas verdades que
crescem diante de nós, até que possamos de fato acreditar, calhou que na vida
experimentei os dois de forma simultânea. Eu estava grávida quando perdi o pai
do meu filho que iria nascer. Foi viuvez, mas também foi aborto: a frase
cortada em pleno gerúndio. Com o coração dele que parou de bater, morreu nosso
futuro.
O que mais doía no luto
era não conseguir que as pessoas sentissem a minha dor. Falei compulsivamente.
Escrevi de forma obsessiva. Até que as pessoas também chorassem. E elas
choraram – mais as suas dores que as minhas, é verdade, mas isso também é empatia. E quando cada momento
latente de falta se transformava em um texto delicado, quando as palavras
conseguiam fazer o outro vestir a minha dor, a tristeza virava alegria: que
alívio me sentir compreendida. Numa espécie de alquimia incidental, transmutei
dor em sorriso.
Veja você como a vida é
chegada numa ironia: o luto é praticamente um parto. É preciso reaprender a
viver sem a pessoa que se foi, como quem nasce de novo – e quem permanecerá o
mesmo? Viver o luto é renascer – e nascer é exercício solitário. É preciso
olhar o mundo novamente e re-conhecer-se diante dele.
Mas, como criança que
cresce, o luto demanda tempo. Enquanto isso, não sai por aí despertando
sorrisos. Num mundo programado para a felicidade, o luto constrange. Abre um
hiato de mal estar. A morte é certeza demasiado espinhosa para que se
toque nela com naturalidade.
O momento menos
solitário talvez seja a primeira semana, o primeiro mês, enquanto duram os
rituais de despedida. Passam-se alguns dias e todos retomam suas vidas. Ninguém
mais quer falar sobre isso. A não ser o próprio enlutado, que não quer falar de
outra coisa. Agora é que a dor vai começar. E parece que não vai parar nunca.
Talvez fique para sempre mesmo: a perda vai se alojando no corpo, como uma bala
encapsulada, até não incomodar mais. Com
paciência, o tempo muda os afetos de lugar. Passa a morar em mim quem se foi.
E então a dor me leva a
outros lugares. Abre meus olhos, me ensina a mudar de assunto. E assim,
distraidamente, vai me mostrando a vida de novo – agora outra, porque sempre é
tempo para mudar.
A perda pede
recolhimento como um pós-operatório, ou reincide. A ferida se abre de novo. É
preciso respeitar o luto (e entregar-se a ele, sem medo) até que chegue sua
hora de ir embora. Cada um descobre sua forma de colocar a dor para trabalhar
em outra direção. A falta pode ser, então, bastante reveladora.
Quando pequenos,
aprendemos com os livros infantis. Depois de adultos, as pessoas que se vão
passam a nos fazer pensar sobre nossas vidas. Lembram-nos a urgência de amar
quem está vivo e perto. E ensinam que fazer escolhas não precisa ser tão
sofrido, nem carece do peso da certeza de ser para sempre. Nenhum de nós é para
sempre.
A vida é curta, sim.
Não vem com prazo de validade nem traz garantias. Cada fim de ano é
oportunidade única para afetos reunidos – riso e choro, inclusive. Comemore.
Mesmo com um lugar vago à mesa, a família está ali. O peru está de dar água na
boca. As crianças correm lá fora. O brinde à vida não pode esperar.
Referências:
http://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/12/26/viver-o-luto-para-nao-viver-de-luto/